Extramuro
Patrícia Veiga
Edição 17 / Maio / Junho de 2019
📷Foto: Ana Marina Coutinho (Coordcom/UFRJ)
No topo do morro do Dendê, localizado na Ilha do Governador, Júlio Cesar construiu um corredor de plantas no trajeto até a casa em que vive com a família. Há sete anos, ele resolveu fazer um experimento: limpou o terreno ao seu redor – onde a vizinhança costuma depositar entulhos e resíduos – e passou a cultivar erva-cidreira, hortelã-pimenta, mamão, saião, batata-doce, tangerina, banana, cajá, entre outras espécies. Em uma passagem íngreme, para proteger os pedestres, Júlio empilhou pneus usados e usou suas curvas para produzir uma horta suspensa. O resultado foi um corredor colorido, por onde circulam, além da gente do lugar, borboletas e pássaros. “Meu sonho era transformar isso aqui em uma floresta”, afirmou.
No início de 2019, ele conheceu um grupo que cultivava uma área no bairro de Cocotá e tinha a intenção de ampliar o trabalho para os espaços comuns da favela. Esse grupo é composto por moradores da Ilha do Governador, do próprio Dendê e estudantes da UFRJ vindos de outras partes do Rio de Janeiro. Ao subir o morro, o coletivo começou por um canteiro na Rua Boa Vista, também conhecida como Rua do Baile, seguiu por outras esquinas, até encontrar o local onde está situada a casa de Júlio César – entre uma quadra de futebol e um mirante voltado para a Baía de Guanabara.
Nosso interlocutor e o grupo de agricultores urbanos perceberam ter os mesmos interesses. “As pessoas do Dendê chamam esse lugar de sítio, por ser mais afastado da comunidade. E eu queria que fosse uma floresta. Agora, vai virar o Sítio-floresta”, brincou. A equipe de reportagem do Conexão UFRJ conheceu o Sítio no dia 31 de março de 2019, data em que foi feito um mutirão para plantar mais de trinta mudas no local: desde árvores nativas para o reflorestamento, como ipês e pau-brasil, até as frutíferas, como cacau, graviola, acerola, maracujá, limão, mamão e tangerina. A intenção foi inaugurar uma agrofloresta e convidar os demais moradores do Dendê para, a partir de então, cuidar dela.
Júlio César participou com entusiasmo: “Gosto de trabalhar na terra, aprendo com ela e vou pensando em soluções para os problemas do dia a dia”. A nutricionista Regina Moura Chagas, moradora da Ilha do Governador, que integra o grupo desde a horta de Cocotá, também estava animada: “Trabalho de segunda a sábado, mas encontrei um tempo para estar aqui hoje. É uma ação que beneficia a todos. Há muito tempo buscava por isso”.
A UFRJ estava lá, na figura de estudantes de Biologia, Engenharia Ambiental, Geografia, entre outros cursos, que vivem ou não na Ilha. Eles foram com o conhecimento produzido em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Ao entrarem em contato com a realidade social, tiveram oportunidade de reconhecer as técnicas e os saberes locais.
Júlio Cesar, nesse sentido, falou sobre o valor das plantas que já existem no Sítio. “A folha de mamão é boa para combater vírus como dengue e zica. Já a folha da pitanga é boa para a próstata”, recomendou. Ele acompanhou o mutirão daquele dia e explicou aos estudantes o que tem observado sobre o seu território. Segundo Júlio, a terra é boa para plantar, mas há o constante desafio de conscientizar os vizinhos a respeito do lixo.
Não por acaso seu apelido na comunidade é “cientista”. Curioso e perspicaz, adquiriu o hábito de pesquisar em bibliotecas e na internet o que lhe desperta a estranheza. Além de conhecer as plantas, já construiu de forno a lenha a caixa de retroprojetor. Sua casa é cheia de invenções. Trabalha como aerógrafo e fabrica seu próprio material de trabalho: borracha elétrica, mesa de luz com escâner, compressor silencioso. “Faço para mim e para os amigos”, revelou.
Parceria para produzir alimentos
O Sítio-floresta imaginado por Júlio César foi planejado em conjunto. No entorno da área conhecida pela comunidade como “lixão”, os estudantes sugeriram plantar árvores de reflorestamento que fossem nativas da mata atlântica. Elas teriam a função de filtrar e proteger o solo. “O terreno pode estar contaminado e essa pode ser uma solução”, explicou Lucas Marques, estudante da UFRJ, morador do Dendê e integrante do projeto de extensão Mutirão de Agroecologia (Muda).
O grupo também conversou sobre a possibilidade de realizar o procedimento da adubação verde, plantando sementes de feijão e outras vagens para “descompactar” o solo. Segundo as pessoas do coletivo, plantas com raízes profundas conseguem abrir canais de circulação para a água e para o ar no interior da terra. Em seguida, desejando ocupar um espaço para além do entorno do “lixão”, o grupo combinou a distribuição das árvores frutíferas juntamente com outras plantas comestíveis. “Em cinco anos, não precisaremos colher, as frutas cairão”, previu Lucas.
A parceria das pessoas presentes nessa experiência foi feita com a finalidade de reflorestar o morro e, ao mesmo tempo, garantir aos moradores autonomia e diversidade em relação à oferta de alimentos. “É muito importante plantar na cidade, isso faz com que as pessoas aproveitem os espaços que têm”, continuou Lucas. “A ideia é que a gente daqui tenha a opção de produzir sua própria comida, trazendo dos mercados somente o que não for possível cultivar aqui”, acrescentou Alexandre Henrique da Silva, morador da Ilha, artesão e artista plástico. “Estamos cumprindo um dever que deveria ser do Estado, que é o de alimentar as pessoas”, defendeu Isabela Maciel, estudante da UFRJ, moradora da Ilha e integrante do projeto de extensão Capim Limão.
Na horta da Boa Vista, o primeiro contato do grupo no Dendê, os resultados já aparecem. Em frente à quadra onde são realizadas as festas da comunidade, lugar de muita circulação, um canteiro faz crescer uma seleção de ervas medicinais. “As pessoas estão cuidando, regando; as crianças aprenderam que podem pegar as folhas para comer”, observou Isabela. Para isso serve a extensão universitária, terreno teórico e prático que, reinventando a já desgastada frase de Pero Vaz de Caminha, “em se plantando, tudo dá”.
Agroecologia como referência
O Sítio-floresta do Dendê é resultado de uma relação que começa a ser construída entre a UFRJ e a sociedade. É, também, consequência de anos de trabalho de determinados projetos de extensão e coletivos estudantis que se dedicam à educação ambiental e à agroecologia.
Agroecologia é uma abordagem que vem amadurecendo enquanto ciência e prática social. Na academia, o termo surgiu ainda na década de 1930 como enfoque crítico ao modelo de produção de alimentos que se convencionou chamar de “agricultura moderna” ou “agricultura de precisão”. A popularização do termo se deu a partir da década de 1980, com a profusão de movimentos ecológicos e políticos que não somente denunciavam catástrofes ambientais, mas propunham soluções para a vida em sociedade.
“Dizem que a agroecologia é uma alternativa ao modelo vigente. Não é. Na verdade, é a solução para problemas contemporâneos, que surgem a partir da Revolução Verde e sua agricultura envenenada, que resultam no adoecimento do ambiente e das pessoas. Agroecologia é a agricultura de nossos povos tradicionais, é o resgate de saberes ancestrais associados a novos conhecimentos”, definiu Paula Brito, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) e coordenadora do projeto de extensão Comunidade Acadêmica que dá Suporte à Agricultura (Casa), entrevistada pelo Conexão UFRJ em reportagem veiculada na Edição n° 15.
Claudia Job Schimitt, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que também concedeu entrevista na ocasião, apresentou a agroecologia como uma “ciência dos lugares”. “É uma ciência que trabalha em diálogo com outras formas de conhecimento. Se não é uma agricultura padronizada, artificializada, isso implica que se entenda muito mais profundamente a dinâmica de cada bioma e as alternativas de como trabalhar com os processos ecológicos. Isso vai amadurecendo nessa relação com esses biomas e essas populações”, definiu.
Rede de Agroecologia da UFRJ
A agrofloresta do Dendê foi abraçada por estudantes que estão vinculados aos projetos de extensão Capim Limão, da Biologia, e Mutirão de Agroecologia, da Engenharia Ambiental. Essas são apenas duas das quase 20 iniciativas que existem nesse sentido na Universidade. Todas elas estão vinculadas à Rede de Agroecologia da UFRJ. Ainda em fase de consolidação, a Rede foi formada em 2016, quando realizado, no estado do Espírito Santo (ES), o primeiro Encontro Regional de Grupos de Agroecologia do Sudeste (Erga-SE). Os estudantes partiram do Rio de Janeiro e, em viagem, se reconheceram, se uniram.
Atualmente, fazem parte da Rede de Agroecologia da UFRJ os seguintes projetos e coletivos: Abricó, Capim Limão, Comunidade Acadêmica que Sustenta a Agricultura (Casa), Ecoponto Muda, Hortas RU, Horto da Vila Residencial, Feira Agroecológica da UFRJ, Govz ao Pé da Letras, Hortinha da PV, Muda Maré, Mutirão de Agroecologia e Permacultura (Muda), Educação Ambiental com professores de Escola Básica (Eapeb), Plantando na Moradia, Questão Agrária em Debate (QADE), Raízes e Frutos e VivaGeomata. Presentes em bairros do Rio de Janeiro, como Vila Residencial, Ilha do Governador, Complexo da Maré, Vila Kennedy, entre outros, e em municípios, como Guapimirim, Duque de Caxias e Paraty, cada um tem a sua trajetória, a sua área de abrangência e uma infinidade de histórias para contar.
Característica comum entre essas iniciativas, diz o estudante Matheus Cremona, da Biologia, é o modo como desenvolvem a escuta e a atenção aos problemas locais. “Trabalhamos para ouvir bastante. Mais do que falar. Sempre que chegamos a um lugar, buscamos saber quais são as demandas das pessoas. Na maioria das vezes, elas já sabem o que querem, mas falta mão, falta alguém para jogar o peso da Universidade. É uma parceria. Nós colaboramos e as pessoas que nos recebem nos ajudam muito também.” Matheus está vinculado a três projetos diferentes e convergentes: Capim Limão, Casa e Feira Agroecológica.
Outro traço da Rede é sua capacidade de atrair novos adeptos e se replicar. Em 2018, foi realizado um primeiro seminário dos grupos de agroecologia da UFRJ. Na ocasião, os estudantes se reuniram em frente à Faculdade de Letras para expor seus trabalhos e trocar experiências. Assim surgiu um novo espaço agroecológico dentro da Cidade Universitária: o canteiro Govz ao Pé da Letras, em homenagem ao estudante Diego Vieira Machado, assassinado dentro do Fundão – cujo caso nunca foi solucionado. “Govz era o nome artístico do Diego. Ele foi assassinado a menos de 200 metros da nossa moradia. Isso foi muito impactante para nós, por isso a homenagem. A memória dele – estudante negro, homossexual e indígena – está eternizada, debaixo daquelas árvores”, situou Mauro Adriano, indígena da etnia Araweté, estudante de licenciatura em Geografia, morador da Residência Estudantil, amigo de Diego e vinculado à Rede pelos projetos Plantando na Moradia, do alojamento, e Raízes e Frutos, da Geografia.
Pensando nessa multiplicação, a Rede criou um grupo de trabalho voltado para a formação de novos e antigos integrantes, cujo foco é a partilha de conhecimentos sobre agricultura, bioconstrução, aproveitamento de resíduos e educação ambiental. Essa formação se dá em mutirões, vivências e cursos que acontecem de forma cíclica – a cada semana, mês ou semestre, a depender da complexidade dos temas tratados. “Recebemos pessoas de dentro e fora da Universidade, experientes ou não. Nosso objetivo maior é prepará-las para a atuação em movimentos sociais e em comunidades tradicionais, onde realmente a agroecologia acontece”, indicou Mauro. “Agroecologia não é só cuidar de planta, não é só recuperar o solo. Agroecologia é também cuidar das pessoas e fazer alguma coisa para que a vida melhore”, arrematou.
Foi a Rede, também, quem fez a primeira “calourada unificada” relacionada à conscientização social e ambiental. Inspirados em uma “tradição” dos estudantes da Biologia, no primeiro semestre de 2019, os coletivos da Rede fizeram uma rodada de mutirões em todos os espaços que cultivam dentro da UFRJ. “Muitos de nós começamos assim, nas recepções do início do curso. Isso nos arrebatou e pensamos que continuará atraindo novos olhares”, declarou Matheus Plumm, estudante de Biologia e um dos “veteranos” do Capim Limão. Para conhecer mais sobre a Rede e acompanhar a vasta programação dos coletivos, acesse a página criada no Facebook.
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